Por Dalton Sardenberg - professor e diretor do Centro de Govrnança Corporativa da FDC; Rosângela Ayres - profissional da área de Compliance
Ética Organizacional
Dentre as diversas correntes filosóficas, podemos definir objetivamente a ética como a preocupação com os julgamentos morais envolvidos na tomada de decisão, sobre o que é certo ou errado, bom ou ruim, pressupondo, portanto, a existência de padrões morais que influenciem o bem-estar humano. Por sua vez, a organização deve ser compreendida como uma unidade social, formada por um agrupamento humano, construída com a finalidade de atingir objetivos específicos. Dessa forma, a ética organizacional se refere aos padrões e princípios assumidos pelos indivíduos dentro de uma estrutura corporativa, a fim de evitar comportamentos prejudiciais e promover um ambiente de justiça, confiança, honestidade e respeito.
Para a promoção da ética organizacional, as corporações têm adotado programas de integridade que englobam as etapas de prevenção, detecção e resposta. Se, na prevenção, os elementos adotados são o estabelecimento de políticas, códigos e treinamentos relacionados à ética, conformidade e integridade, na detecção, o instrumento mais comum é o canal de denúncia. No entanto, sua efetividade depende da decisão dos colaboradores de utilizá-lo para registrar irregularidades praticadas contra a empresa em que trabalham, ou órgãos externos, de ilícitos cometidos pela própria organização. Essa predisposição em denunciar poderá, no entanto, ser influenciada pela visão do colaborador sobre a “flexibilidade ética organizacional”, conceito apresentando por Agalgatti e Krishna (2007).
Ao identificar uma flexibilização moral que possa levar à impunidade, existência de canal de denúncia inadequado, lealdade incondicional ao grupo a que pertence ou à organização, uma cultura de não realização e riscos de consequências adversas para si mesmo, o profissional que detém a informação pode optar, simplesmente, por não fazer a denúncia.
Alguns fatores são favoráveis aos potenciais colaboradores: existência de um canal de denúncia que possibilite o relato das irregularidades, de forma anônima; reconhecimento da existência de ética e moral na organização; apuração de denúncias de forma efetiva; condições favoráveis para a efetivação das denúncias; ambiente ético dentro da empresa; estabelecimento de normativas e estruturas; o exemplo vem de cima (tone at the top).
Riscos e Oportunidades
Segundo a Association of Certified Fraud Examiners (ACFE), maior organização antifraude do mundo, o primeiro risco efetivo para uma organização, com a ocorrência de ilícitos, é a perda de receitas, o que compromete a lucratividade e decorre de “fraudes ocupacionais”, como a apropriação indevida de ativos, demonstrações fraudulentas e corrupção, consumindo em torno de 5% das receitas anuais das empresas. O Relatório de 2018 da entidade aponta a denúncia como principal forma de detecção de atos de corrupção e fraudes (45%), o que evidencia a importância deste mecanismo em relação a outras fontes, como auditoria interna (15%), monitoramento do próprio gestor (9%) ou auditoria externa (6%).
No Brasil, a Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção – LAC, e o Decreto 8.420/2015 inovaram ao deliberar sobre o estabelecimento de um canal de denúncia (interno, nas organizações), como mecanismo de combate à fraude, corrupção e outros desvios, e incluir o conceito de “cegueira deliberada”, por meio do estabelecimento da responsabilidade objetiva – responsabilização independente da aferição de culpa ou gradação de envolvimento no ilícito. Também foi criada a possibilidade de denúncia em várias entidades de controle (canais de denúncia externos às organizações), como o Ministério Público Federal (MPF), Tribunal de Contas da União (TCU), Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e ControladoriaGeral da União (CGU).
As empresas não são obrigadas a implantar um Programa de Integridade e, em consequência, um canal de denúncia, mas, a violação da LAC pode resultar nas seguintes sanções:
- Administrativa: multa de 0,1% até 20% do faturamento bruto do exercício anterior ou de R$ 6 mil até R$ 60 milhões, caso não seja possível usar o critério do faturamento; publicação extraordinária de decisão administrativa sancionadora; restrições para contratar com a Administração Pública.
- Judicial: pode ser decretado o perdimento de bens, suspensão de atividades, dissolução compulsória, proibição a recebimentos de incentivos, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, por prazo determinado.
Além disso, a organização pode sofrer relevantes danos à imagem e reputação, monitoramento por entidades governamentais e regulatórias e perda de confiança dos investidores e outras partes interessadas. As instituições financeiras privadas também podem ter restrições para manutenção de relacionamento com empresas sancionadas, dificultando a captação de recursos para a organização.
Por outro lado, ao estabelecer um canal de denúncia interno, anônimo e independente, a alta administração dá a oportunidade para qualquer colaborador reportar suspeitas de atos que violem a conformidade normativa, regulatória e legal da organização. Poder cuidar das alegações registradas vai permitir à empresa resolver possíveis violações e manter o tratamento do assunto internamente, preservando a credibilidade de sua marca.
Conforme a pesquisa Customer Study On Organizational Whistleblowing, realizada em 2019, pelo Whistleblowing Centre, 50% dos participantes declararam que o sistema de whistleblowing promove a construção da confiança na empresa. O estudo também revelou que 30% das denúncias se referem a irregularidades financeiras.
Podemos, assim, apontar pelo menos três benefícios relevantes para as organizações, com a implantação de um sistema de denúncia:
- Construção de confiança na organização.
- Detecção de comportamentos relacionados a desvios que, de outra forma, ficariam desconhecidos, podendo sua descoberta, em estágios iniciais, reduzir os impactos na organização.
- Atuação de forma preventiva, pois a implantação do sistema de denúncia pode promover a descontinuidade de desvios que estejam ocorrendo.
O tipo de resposta da organização às irregularidades tem impacto no seu desempenho de curto e longo prazo, e a direção deste efeito, positivo ou negativo, depende das circunstâncias. Uma denúncia que levar à descoberta e descontinuidade de desvio de um empregado, por exemplo, poderá claramente favorecer a organização, enquanto uma empresa processada por alguma irregularidade pode ser vista como suspeita pelo mercado ou por agências de controle.
Outra reflexão importante é sobre o quanto os funcionários de uma empresa estão dispostos a denunciar. Conforme pesquisa de 2015, conduzida pelo ICTS, consultoria especializada em risco e compliance – “Perfil Ético dos Profissionais das Corporações Brasileiras” –, 40% dos participantes se declararam prontos a usar os canais de denúncia disponibilizados, enquanto 12% afirmaram que não denunciariam em qualquer situação, principalmente, por não desejarem ser vistos como “dedos-duros”. Os demais 48% assumiram que poderiam até fazer uma denúncia, dependendo do medo ou não de represálias, dos laços nas relações interpessoais que envolvessem o denunciado e a lealdade à chefia imediata e sua equipe, se a ocorrência os impactasse de alguma forma.
Muitos administradores idealizam um canal de denúncia sem registros de relatos, mas isso pode indicar um problema maior, como a falta de credibilidade do canal e do processo de tratamento da denúncia. Mansbach e Bachner (2010) defendem a ideia de que o whistleblowing ocorre de forma gradual, com o denunciante se aproximando inicialmente do superior hierárquico para delatar a ocorrência ou suspeita de delito, depois progredindo para a denúncia no canal interno e, em seguida, no canal externo (canais de autoridades reguladoras e/ou entidades governamentais) e na mídia, caso a tentativa anterior tenha sido considerada insuficiente para interrupção do malfeito e sanção do delinquente.
Conclusão
O canal de denúncia é um instrumento essencial para a garantia da ética organizacional, pois funciona como inibidor de fraudes e má conduta corporativa, induzindo a empresa e todos os seus colaboradores a agirem segundo os princípios de justiça, transparência e conformidade.
A denúncia é realmente uma prática ética, permitindo que seja colocada uma luz sobre ações incorretas que poderiam, de outra forma, permanecerem ocultas. Para definir o que é um bom profissional, diversas características são levadas em consideração, e uma das mais importantes é o comportamento íntegro. Mas, além de fazer a coisa certa, o bom profissional deve estar preparado para desafiar comportamentos de outras pessoas que possam ser percebidos como algo fora do padrão ético esperado.
Um ambiente interno guiado pela honestidade e pelo respeito ao outro promove o comprometimento de todos com a missão da empresa. Desconsiderar a importância da denúncia dentro de uma organização, nos tempos atuais, é ampliar os riscos de sofrer um processo judicial, multas consideráveis, obrigação de ressarcimento dos danos causados e uma exposição pública, com danos à imagem e reputação da organização. Resulta também em maior risco de perda de receitas e de valor para as partes interessadas e demais penalidades previstas na Lei Anticorrupção.
A criação e manutenção de um sistema de whistleblowing, com um canal de denúncia anônimo e independente que resulte em denúncia efetiva, pode contribuir na geração de valor para a organização, com aumento de sua credibilidade perante investidores, colaboradores e demais partes interessadas.
A efetividade dos conceitos Tone at the Top (exemplo que vem de cima) e Walking the Talk (sintonia com o que se fala) são fatores determinantes: afinal, como denunciar se a alta administração estiver envolvida ou não se importar? Por isso, a “flexibilidade ética organizacional” vista como rígida, quando bem estabelecida por meio de políticas, códigos, programas e normativos e o explícito patrocínio de todos os níveis de liderança, fortalece o ambiente ético, promovendo a redução de riscos e a geração de oportunidades para a organização.
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA
AGALGATTI, B. H.; KRISHNA, S. Business Ethics: concepts & practices. Pune: Nirali Prakashan, 2007.
AYRES, R. M. Contabilidade e whistleblowing: influência das lógicas institucionais sobre a intenção de denúncia por profissionais. Rio de Janeiro: Tese (Doutorado em Ciências Contábeis) – Faculdade de Administração e Ciências Contábeis - FACC, 2019. 387 f.
CAMARGO, D. M. Denuncismo desenfreado. Jusbrasil, 2013. Disponível em: https://danieldecamargo. jusbrasil.com.br/artigos/121942795/denuncismo-desenfreado. Acesso em: 4 nov. 2019.
ICTS. Perfil ético dos profissionais das corporações Brasileiras. ICTS, 2015. Disponível em: https://icts. com.br/app/webroot/files/uploads/ckfinder/files/perfil_etico_bienal_2703_FINAL(2).pdf. Acesso em: 4 nov. 2019.
MANSBACH, A.; BACHNER, Y. G. Internal or external whistleblowing: nurses willingness to report wrongdoing. Nursing Ethics, v. 14, n. 4, p. 483-490, 2010.
NEAR, J. P.; MICELI, M. P. Effective whistleblowing. The Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 679-708, Jul. 1995.